Somos todos escravos das nossas escolhas. Liberdade, porém, às nossas vontades.
Escolher escalar um big wall significa
portear uma quantidade imensa de equipos, comida e água para vários dias na
parede. Significa escalar. E significa descer.
Essa querência soberana nos faz miseráveis.
Nos traz aos farrapos. Arrastamos nossa carga metro a metro. Limitamos nossos
recursos. Aumentamos nossa tolerância. Visitamos os confins de nossa motivação.
Superamos um obstáculo de cada vez com todo o poder da concentração absoluta de
nossa atenção à tarefa. Não nos permitirmos deixar para depois qualquer função.
Vamos até o fim.
Líderes da nossa vontade, nós avaliamos o
sucesso pela medida da diversão. Não há troféu ou hashtag. A salvação está em aprender, em conviver, em responder. O
cume está na mesa do bar com os amigos! Quais são as nossas reais necessidades
e quais são os nossos verdadeiros desejos?
Visitar Yosemite, a meca da escalada em
rocha, é uma peregrinação que eu sonho em fazer desde que comecei a escalar.
Ídolos e escaladas lendárias, ferramentas e técnicas criadas ali. Imagens,
nomes e sensações que me acompanham desde meus 16 anos de idade. Agora, junto
com a Cami, estávamos prontos pra viver a nossa aventura no “vale”.
Escolhemos o final de julho. Chegamos na
semana mais quente do ano. Escolhemos escalar o El Capitan. Não havia nenhum
escalador na parede! Não havia escaladores no vale tampouco. Não havia nenhuma
brisa no vale! Havia muito calor no vale. Havia muuitos turistas no vale... Colamos
com a Juliana Petters e seus betas e sua vibe fizeram-nos sentir bem-vindos.
Nossa vontade nos levaria a via Zodiac VI
C3F ou A3. Estimamos que passaríamos 6 dias pendurados. Concordamos em içar 4
litros de água por dia por pessoa.
Algumas montanhas tem sherpas, outras tem
cavalos, camelos ou yaks para abastecer o acampamento base... o El Capitan tem
carrinho de mão! A estrutura da gringolândia mantém uma linha de ônibus
gratuita à todos os turistas do Parque. Este transporte liga os acampamentos e
hotéis do vale com o início de todas as trilhas e atrações de Yosemite. O El
Capitan está na parada 5 assim, apesar da aversão dos turistas a nossa bagagem,
pela primeira vez na vida utilizei a roda para aproximação de um big wall. O
motorista do ônibus, Roger, um senhor sexagenário foi o único que não se
surpreendeu com o material, pelo contrário, ele escalou o El Capitan no anos 80
e fraternalmente nos passou seus betas.
Quando tocamos a pedra, o alívio do peso
das mochilas, o frescor da sombra do gigante e a carícia de uma brisa constante
afastou todas as dúvidas que carregamos até ali. Estávamos leves. Sentimos a
necessidade de tirar os pés do chão.
Quatro cordas, 3 jogos de camalots, 2 jogos
de nuts, 8 pitons, 6 cliffs, 2 cam hooks, 6 heads, 4 screamers, 90 mosquetões,
20 fitas, 4 polias, EPIs, portaledge, equipos de bivaque, comida, água, muita
música pesada e vontade ferrenha. Pronto agora é só despachar as malas no
guichê e curtir a viagem!
Nesse nível de planejamento qualquer
mudança deve ser minuciosa. Por isso quando conhecemos o Sam, escalador solitário
de 23 anos, abandonando a via que estávamos prestes a nos comprometer pela
próxima semana, foi preciso mais de 40 segundos discutindo logística antes de
convidá-lo a dar um segundo intento na montanha junto a nossa cordada.
O Sam estava a 3 dias na parede e havia
chegado até a P10 antes de rapelar. Sugeri que ele descesse pra tomar um banho,
descansar uma noite no vale e se reabastecer de água e comida. Enquanto isso
poderíamos por a máquina em movimento esta noite e fixar até a P2 voltando pra
bivacar no chão.
Para alcançar a P1 e a P2 utilizamos uma
variante para a familiarização direta com a escalada em Yosemite. Você sai do
chão em sua primeira escalada diretamente para um A3! 50 metros de copperheads
fixos e rivets de 6mm, acho que tinha uma chapa...
Fixamos a P2, içamos um haulbag e baixamos
pra dormir no chão. Base jumpers nos mostraram a distância para o cume.
A face sudeste do El Capitan reflete o Sol
entre 10:00 e 17:00 e nosso plano inicial era de escalar nas horas de sombra ou
a noite e meditar e até tentar dormir no sol. Por isso combinamos de encontrar
o Sam apenas às 16:20 pra sair definitivamente do chão na sombra. Tínhamos medo do calor e descemos ao vale uma
última vez para buscar mais 6 litros de água. Todo passeio pela base do El
Capitan rendia alguns equipamentos achados; nuts, aliens e até um camalot #4!
Uma troca justa pelo material que ainda iríamos deixar cair também...
O Sam trouxe um segundo haulbag, outro
portaledge, 25 litros de água, comida, EPIs e bivaque. Nossas habilidades de
içamento estavam prestes a serem testadas! Aquela noite fixamos a P4 e
aprendemos qual sistema de polias iríamos precisar para içar os dois haulbags
juntos. Calculei que o peso total foi maior que 150 kg. É como levar um amigo
sedentário para escalar! Um amigão!!
Na manhã do segundo dia pendurados a Cami e
eu içamos até a P4 e o Sam fez a P5 e P6. A Cami preferiu não guiar estas cordadas
de artificial. As horas do Sol passaram rápidas e o vento aumentava conforme
ganhávamos altura o que nos permitiu trabalhar de dia e abortar a estratégia dos
vampiros!
Eu estava ansioso pela P7. Desde o nosso
bivaque eu podia ver um diedro fendado que o croqui chamava de Black Tower e
descrevia com 5.11d ou A3. Não sei porque eu estava confiante de que poderia
livrar aquela enfiada... deixei os estribos, calcei as sapatas, entalei mãos e
pés e fui! Uma fenda ótima me permitiu metralhar diversas proteções no início.
Até que a torre fica vertical e a fenda fecha restando apenas as marcas de
pitons. Voltei na minha última proteção e equalizei com uma segunda peça da
melhor forma possível. Decidi tocar! Dentro da minha cabeça: “Bora Gui! É um
diedro liso exceto por 4 regletes verticais. Essas agarras devem te elevar uns
4 metros até alcançar o início de uma nova fissura. Ali a fenda tem a largura
dos seus dedos e você vai conseguir entalar uma boa proteção.” Do outro lado a
queda. “Uns 8 metros no máximo... fora a base do diedro não tem outros
obstáculos para o voo. Na verdade, tem 350 metros de ar debaixo de você neste
momento.” Eu escolho agora! “Bora Gui!” E chapando os pés com o máximo de
aderência possível alcanço o primeiro reglete. Aperto os dedos, descubro onde o
granito não é tão liso. Sinto a borracha deformar debaixo do meu pé. Junto os
dois pés em uma parede e as duas mãos na outra. A aderência é ótima, me sinto
confiante, mas trabalho os pés próximos para tocar controladamente o próximo
reglete. Aperto os dedos, chapo o pé. “Ok, eu posso repetir este padrão de
movimento.” Concentra. Pisa no reglete. Se equilibra. “Bora Gui! Oposiçãoo!
Entala!! Vitóooria!!”
Só que não... eu estou de pé no topo da
Black Tower e não vejo a P7. A parede segue negativa porém, sem fendas ou
agarras sólidas. Vejo um copperhead fixo, um cabo de nut arrebentado e o que
parece ser um beak abandonado mais acima. Não há possibilidade de proteções
sólidas. Tento um nut, mas a laca é tão expansiva que faz o copperhead parecer bom...
Não sinto o menor desejo de seguir em livre. Necessito artificializar. Este foi
o crux da via. Precisei repor um copperhead, usar todos os menores micro nuts e
além do beak abandonado, martelar mais 2. “Agora sim (horas depois); Vitóoria!!
P7 fixa!”
O Tio
Sam, que não é o tio do Sam, está encarregado da manutenção das vias de
escalada em Yosemite e todas as reuniões têm 3 parabolts novos. Não tivemos
problema em pendurar 2 portaledges para bivacar nas P3, P7, P10, P13. Mas fora
das reuniões as proteções fixas são muito raras.
Olhando a montanha desde o ponto de ônibus
pudemos reconhecer alguns pontos de referência, a P8 que está no início do Grey
Circle, uma marca cinza gigantesca e ainda mais negativa da parede. A P10 é o
clássico The Nipple, o mamilo que foi conquistado em solitário pelo Charlie Porter
em 1972 e que, com consentimento da minha esposa, foi a maior teta que eu já
peguei. O peito é firme e arredondado com um teto negativo e fendado na sua
base. O crux da cordada é a biqueta, o bico da teta, que exige uma transição de
escalada artificial para livre e uma movimentação corporal extenuante é
necessária para alcançar a base do peito, apertar o mamilo e meter a cabeça pra
dentro da chaminé do headwall. Fim do Grey Circle.
Dormimos muito bem todas as noites, não
fazia frio nem calor. Sonhei fácil. Não precisávamos de isolantes ou de
cobertura. Nos sentíamos confortáveis com a montanha, com o clima, com a
escalada e uns com os outros. Abraçando a Cami uma noite, o portaledge girou e
acordamos enroscados nas fitas olhando pro chão. Estava tudo tão agradável que
mesmo de cabeça pra baixo, até a adrenalina veio fazendo efeito calmamente pra
gente sair dali.
P11 tem a fenda Marca do Zorro e a Cami e
eu assistimos uma bela batalha enquanto o Sam exorcizava seus demônios nesta
cordada que o tirou da parede na semana anterior. P12 tem a Devil’s Brow, Testa
do Capeta um teto que também se enxerga desde o vale. A P13 a gente não
conseguia distinguir desde o chão e pelo seu nome: Platô do amendoim, esperávamos
pelo menor dos platôs, mas me surpreendi porque até cabia um pote de amendoins.
Achamos um galão de água deixado por outros escaladores.
Gigantes se encontravam todas as manhãs. Participar
dessas reuniões cordiais foi um privilégio. Assistíamos desde o nosso cantinho
o Sol tocar a Montanha e acordar o Vento. Tentávamos captar o temperamento uns
dos outros, imponentes e dóceis nesses dias. O vento sempre foi o mais gentil e
mesmo quando o Sol angustiava, ele sempre nos consolou. Nosso plano original
era de fazer do portaledge um portashade, uma sombra portátil. Mas o vento nos
ajudou a inflar uma pipa do nosso saco de bivaque e voilá! Cama portátil com
sombra o dia todo!
Desde o bivaque no Platô do Amendoim,
admirávamos a fenda que seria a P14 no dia seguinte. Senti vontade de escalar
em livre. O croqui dizia 5.10d ou C1. “Boa notícia.” Mas também informava que
por 25 metros a fenda era larga, offwidth. “Má notícia.” As maiores proteções
que trouxemos eram um camalot #5 e dois camalots #4. Quando o Sam tentou subir
aqui em solitário, não trazia nada maior que o #4 (que ele achou na base). Por
isso, manufaturou um pedaço de tábua com uns 5cm de espessura que planejava
usar de espaçador entre a parede da fenda e sua maior peça.
Saindo do platô escalei a fenda da direita
que me parecia mais fácil e estreita onde pude proteger com algumas peças médias
e dois camalots #3 ao longo de uns 15 metros. Esta fenda voltava a se encontrar
com o diedro e sua fenda larga. Aqui a coisa se complicou. “Eu já esperava por
isso.” Produzi a melhor proteção que consegui com o #4 e a tábua. Entrei no offwidth imaginando
que poderia arrastar a outra peça #4 e eventualmente proteger com o #5.
Imediatamente a fenda é muito larga para o #4 e preciso proteger com o #5.
Repenso meu desejo. “Em livre ou em artificial minhas opções são escassas.
Obviamente, eu preciso pendurar este último #4 na pedra e o único lugar que
aceita ele tá ali em baixo, mas eu não vou desescalar.” Decidi sair da fenda
pra escalar em oposição. “Se eu conseguir dominar a borda desta fenda por uns 2
metros chapando os pés em aderência acho que vou alcançar aqueles regletes e
subir naquele pé no positivo. Dali espero que mais 3 ou 4 agarras me elevem até
o final do diedro onde não consigo ver daqui, mas oxalá eu consiga uma proteção
a prova de bomba!” Saio do buraco. Pego na borda. Chapo um pé. Estendo os
braços. Trago o outro pé. “Acho que vou conseguiiiiii...” Estou voando! A corda
absorveu muito do impacto e me deixou pendurado a uns 4 metros da última
proteção. Volto pra pedra e entalo minha coxa na fenda da direita, inspeciono o
bloquete de madeira. Já que estou de volta aqui embaixo, encaixo o último #4 na
fenda e espero que tenha sido o seu peso pendurado na minha cadeirinha que me
derrubou. “Agora vai!”
Completei esta enfiada em livre e no final
do diedro com boas proteções, escalei uma travessia por baixo de um teto por
uns 3 metros pisando em um bloco de ar de 470 metros de espessura. Percebi que
estava prestes a tentar um domínio no maior negativo que já me pendurei na vida
e tive vontade de me demorar mais. Os próximos segundos eu saboreei com todos
os meus sentidos. Deixei que meus dedos e pés tateando escalassem sem a minha
visão que escolhi usar para apreciar a distância da minha posição com relação
ao chão. O vento era forte, as agarras eram fundas. Enxerguei uma outra equipe
iniciando a mesma via e quando virei o domínio do teto meu corpo todo se
arrastou de lado pra uma rampa positiva e minha cabeça foi a última parte a
sair do negativo absorvendo todas as emoções. Do lado de lá a vida era outra. Daqui
já estamos perto do cume e a volta à realidade me entristeceu um pouco.
Gui
Pahl jul/2016