O Pico do Dedo de Deus é uma montanha fascinante que
assiste, inabalável, as massas de baixa pressão da Serra dos Órgãos colidirem
com as frentes climáticas vindas do Atlântico. Esta movimentação atormenta a
floresta do vale do Rio Soberbo, mas este gigante de granito se mantem
indiferente.
Somos insignificantes nas suas encostas, perceptíveis
apenas nos pensamentos de nossos amigos, já que não nos enxergam mais desde o
vale. Nosso plano era escalar a via Os Impermeáveis A2+D6 na face norte.
Vejo grandes vantagens em uma cordada de três pessoas na
escalada de grandes paredes, mas vejo meus sonhos realizados ao formar um time
com minha esposa e nosso filho, mesmo que ele ainda esteja na barriga dela,
mesmo que a gente não alcance o cume, mesmo que a gente nem ache a via que
planejamos!
7°
DIA
Perdi
minha carteira e mesmo sem dinheiro ou documentos me sinto muito afortunado;
tenho 1 milhão de opções!
Estamos sentados num restaurante saboreando feijão. O garfo
já caiu da minha mão duas vezes. Não importa agora. Ontem à noite eu deixei
cair nosso último jantar. Sorte que o platô era largo. Cami nem viu!
O dia amanheceu lindo, o croqui marcava nossa posição no
início da caminhada de descida. Comemos os últimos amendoins e demos nossos
últimos goles d’água. Kilian chutou a barriga da mãe algumas vezes e carregamos
os haulbags nas
costas. Mas com aproximadamente 5 metros de pernada já nos vimos pendurando
todas as tralhas de novo para o primeiro de muitos rapéis com a nossa
geladeira. Tivemos que encordar diversos trechos desta caminhada e no restante
do caminho era mais fácil arrastar a carga pela trilha do que se enroscar nos
cipós com ela nas costas. Estávamos lentos, com sede e exaustos. Foi quando,
após sete dias, nossa aventura acabou. Encontramos outros seres humanos. E como
foi reconfortante ser recebido de volta no mundo dos humanos por dois amigos!
Eles traziam água, biscoitos e mochilas vazias e vieram nos ajudar justamente
quando acabaram nossas opções.
6°
DIA
A
via Teixeira foi a primeira ascensão ao Dedo de Deus. Um marco histórico na
escalada brasileira em 1912. Carregamos um croqui pois pretendíamos descer por
esta rota. Finalmente vamos escalar com um croqui. Isto por que, na última
semana, escalamos uma via (sem croqui) que terminou no platô base da Teixeira.
Ali, depois de escalar uns 20 metros desde a nossa P9, pisamos em outra coisa
que não fosse fitas ou agarras. Saímos do Planeta Pendurado. A gravidade ficou
mais leve. Celebramos uma sensação de vitória e de liberdade. Com o dia
ensolarado, estávamos determinados a chegar no topo. Mas antes, estacionamos
nosso motor-home neste pátio para subir estas chaminés levando só a câmera. Não
conhecemos a descida, mas já pensamos no encontro com os amigos no bar.
Sem criar expectativas sobre o futuro, volto novamente a
minha atenção às sensações do agora. Esta é razão pela qual escaladores buscam
as montanhas. Absorvo minhas emoções e nos olhos da minha princesa, percebo a
força de uma Rainha. Agradeço pelo seu amor e pela sua confiança. Compartilhamos
todas as nossas paixões e desejos e se fosse preciso descrever este momento com
uma palavra eu usaria: CUME.
Nesta tarde visitamos o topo do Dedo de Deus. Vivemos a
história, apreciamos a vista, tiramos fotos, assinamos o livro e rapelamos para
viver o próximo capítulo de nossas vidas.
5°
DIA
Durante
a madrugada o vento mudou. Dentro do
nosso portaledge ele ajudava a secar
nossos equipamentos e lá em cima varreu as nuvens. Acordamos com pássaros
cantando na mesma árvore que nós. As nuvens subiram a serra e se afastaram da
gente. Deixar a P6 naquele ninho ainda me dava medo. Os farrapos de corda
abandonados ali me instigavam a imaginar a fuga épica do time que passou por
ali. Por algum motivo esta cordada, que teve uma de suas linhas enroscadas,
achou que a melhor opção era cortá-la ao invés de tolerar mais algumas horas pendurados.
Não enxergávamos a próxima reunião e isto contribuía para o
medo de não alcançarmos o cume ou a descida pelo outro lado da montanha e talvez
ter nossas cordas também enroscadas. A escalada seguia outro lance com mato,
mas desta vez em travessia para a esquerda. Nestas travessias sempre há o medo
de o haulbag entalar. Manobramos
nosso bode por trás da árvore e percebemos a treta que ia ser içá-lo neste
trecho. Para a P7 a escalada foi toda em livre com uma longa fenda offwidth onde
um camalot #6 fez uma falta tremenda
e lances em oposição tremendo tiveram que dar conta do recado. Entalamentos de
joelho alternados com reza braba protegeram esta enfiada. Próximo de esticar a
corda uma planta gigante ocupava a fenda e com muito medo da queda e poucos
regletes, fui obrigado a contornar pela face. O crux antes da salvação na parada.
A fenda acabava na base de um teto ainda maior que o primeiro e apesar do platô
quebrado, foi o mais perto que nos aproximamos de uma inclinação positiva desde
que tiramos os pés do chão. O Sol apareceu enquanto a Cami fixava, desentalava
e desviava nosso barril. Nas próximas horas o calor deu medo. Precisamos criar
uma sombra com a manta térmica. Nossa perspectiva do vale estava mudando e vimos
que estávamos na altura do último diedro do morro a nossa frente, o Cabeça de
Peixe. Fomos tomados por uma vontade de cume! Tivemos que conter a ansiedade
para focar em escalar a próxima enfiada; uma travessia para direita com
proteções ruins, longos lances em cliffs
de agarras, um piton lâmina e outros
lances em livre. Na P8 montamos nosso portaledge
pela quinta vez naquela parede e pela primeira noite vimos o céu estrelado.
Estávamos cansados, mas quando o Google finalmente nos mostrou uma imagem da
face norte do Dedo de Deus gritamos de emoção ao constatar que estávamos a
metros do final da via.
4°
DIA
Desde
a noite passada a dúvida se encordou com a gente. Presenciamos muita chuva e
muita fúria. Hoje pela manhã acordamos acima das nuvens. Teresópolis ainda não
tinha secado. Será que vai chover mais? Vamos para cima ou para baixo? Esta via
estará inacabada? Pela esquerda ou pela direita? Em livre ou artificial? Pelo
mato ou pela pedra? Pelo menos uma certeza: temos opções!
Saí nesta guiada tentando ir pra cima. Um muro vertical
liso que tirava qualquer chance de escalar em livre e reduzia nossas opções ao
trabalho de cavar mais uma fenda entupida de terra e cheia de ornamentos de
paisagismo. Desci. Decidi trepar o mato que brota na canaleta à direita e por
ali definitivamente vou em livre. Puxo folhas e cavo degraus por uns metros até
que a canaleta fica mais escalável e encontro algumas proteções, escalo lances
fáceis e encontro diversas relíquias como varas de madeira, cordas e proteções
fixas muito antigas. Decidi não levar minha família para escalar na tumba de Tutancâmon
e desci pela segunda vez neste dia.
Enquanto desescalava considerei uma chaminé que agora me
pareceu razoável. Novamente os camalots
grandes foram úteis. Depois da sessão de crossfit me arrastando pra cima, tive
certeza de que voltaríamos à progressão vertical ao ver uma sequência de fendas
perfeitas. Mas antes de alcançar a P6 na árvore, precisei descer pela terceira
vez para desenroscar a corda retinida de dentro da chaminé.
Por volta das 15:00 a sombra se instalou e rapidamente
escureceu como noite. Precisamos das lanternas! Eu içava nossa casa enquanto a
Cami limpava a chaminé e Kilian dava umas piruetas no útero. A chuva chegou sem
vento, porém mais gelada do que ontem. Todos aumentamos nossa intensidade de
trabalho afim de produzir mais calor e nos abraçarmos logo. Em seguida vieram
aqueles raios, clarões, trovões e sustos fdp! Ainda tínhamos muito trabalho e o
frio já beirava o intolerável. Mantivemos boa comunicação, porém fomos obrigados
a abandonar a corda auxiliar do haulbag
para iniciar nosso bivaque mais cedo. Nesta noite papai montou a casinha, fez
faxina, secou roupa, preparou o jantar e só então mamãe chegou do trabalho.
Ensopada de lama, ela contou pro neném a historinha da chaminé ensebada e da
cordinha agarrada. Esta noite a família dormiu feliz e juntinha.
3°
DIA
Amanhecemos
dentro da neblina e a parede muito molhada ainda. Mas o vento também acordou
cedo e quando finalizamos nosso café ele já tinha passado o rodo na pedra.
Assim puxamos o carro rumo ao diedrão. O carro e o trailer que rebocamos parede
acima! O início da terceira enfiada saiu em livre, mas para alcançar a P3
precisei me apoiar em alguns cliffs
de agarras e trocar um copperhead
podre. Desde a primeira enfiada estamos seguindo um rastro de heads enferrujados e pitons caseiros que apelidamos de
chupeta pela sua aparência. Ou talvez por influência do Kilian. Foram feitos com
uma lâmina de metal e uma arruela soldada com cabo de aço. Todos os cabos estão
muito deteriorados e até aqui fui capaz de evitá-los principalmente com o uso
de cliffs. Há bastante proteções
fixas nesta via também, sempre grampos P. Com reuniões duplicadas, ficamos
seguros de que uma fuga dali seria relativamente fácil. Neste dia trocamos umas
mensagens com o Marcel e Diogo e tivemos certeza de que estávamos escalando a
via errada. Apesar de não saber de nada do que estava por vir alcançamos o
diedro dos sonhos. Avaliamos nossas opções e entendemos que a sorte nos trouxe
até ali. Parecia uma escalada difícil, mas a inclinação negativa e o super-teto
lá em cima nos abrigavam confortavelmente do clima tempestuoso. Não havia do
que fugir e enfrentamos um artificial móvel que acredito que pode ser liberado
por outras expedições. Na P4 uma boa e uma má notícia. A boa é que podemos
evitar o offwidth por um domínio bem
no meio do super teto. A má notícia é que os grampos desta parada estão muito
oxidados pela água que escorre de dentro da montanha. Estão tipo derretidos por
uma baba ácida monstra. Nossas regras familiares ditam que só montamos nosso
casulo em reuniões com no mínimo 3 proteções sólidas. Aqueles grampos eu não
queria usar nem como agarra de pé! Em todas as reuniões fomos capazes de criar
redundância com proteções móveis além dos grampos P. Vasculhando nossas opções
o placar virou a favor da nossa sorte quando consegui entalar o camalot #5, o maior que trouxemos, junto
a outras peças grandes por ali para nos pendurarmos. Ao sair escalando, logo
depois de virar o teto, o nosso futuro se abriu diante de meus olhos; em uma
espécie de canaleta diagonal eu via que a escalada seguia em livre e lá atrás no
lugar onde eu deveria enxergar a outra encosta do vale, eu só via baba.
Estávamos nos encontrando de novo com aquele monstro que não conseguiu nos
tocar na Pedra do Sino em 2013. Ele não estava nada dócil. Ficou óbvio que
nossa sorte se acabara e seguiríamos expostos até a P5. Antes de instalar o portaledge, babou. A chuva lambeu a
montanha. O vento sacudia nossos trapos mas somente quando passaram os raios e
trovões é que nos apavoramos. Não havia mais o que fazer além de aplicar o
nosso processo habitual de bivaques de emergência para situações calamitosas em
ambientes remotos e seguir com o plano. Dentro de casa, conseguimos nos secar
com duas toalhas-esponja enquanto jantamos e depois disso dormimos super bem.
2°
DIA
Choveu
pesado na madrugada e a lona do portaledge
suportou o primeiro teste. Primeiro teste também do nosso sistema de içamento.
Até a base do granito (1381m) tivemos que içar 50 metros em diversas parcelas
por causa da vegetação. Desde a copa da floresta vimos dois diedros e uma
proteção fixa. Vasculhei as outras possibilidades e, apesar de estranho, a
fenda em travessia para direita me pareceu a melhor alternativa. Tocamos a
pedra em um artificial móvel delicado, bem inclinado e com alguma terra nas
fendas. Belo início! Alta qualidade! Ganho altura e encontro boas proteções.
Alcanço o grampo P, apoio em um cliff
de agarra, buracos e vejo os primeiros heads
bem oxidados. Seus cabos se soltam nos meus dedos ao inspecioná-los. Mais uns movimentos
em cliffs e acho uma fenda boa, um
platô, outro grampo, uma fenda aberta, mais material oxidado. Cliff, grampo, buraco, fenda aberta,
laca, platô, P1. Do lado direito da P1 tem um frigobar apoiado no platô e
preciso me certificar de que também cabe a nossa mobília. Nosso plano é passar
4 dias na parede e trazemos 30 litros de água e 15.000 kcal.
A próxima enfiada também foi toda em artificial com proteções
fixas, buracos de cliff e fendas
abertas. A P2 abriu nossas mentes com o visual do diedro laranja com um super-teto
fendado para o qual nos dirigíamos. Fixamos 2/3 da P3 e montamos nosso ninho na
P2. A chuva esperou que terminássemos o jantar e ligou uma ducha densa durante
toda a madrugada. Apesar disto, dormimos tranquilos dentro do nosso casulo.
1°
DIA
Encontramos
o Marcel, Felipe e Diogo no estacionamento. Nunca tivemos tanto conforto com
amigos nos ajudando na conquista do inútil. Para a cordada gestante esta ajuda na
aproximação foi essencial.
Iniciamos a trilha na Santinha (1100m) e a neblina não
deixou a gente ver a parede. O Diogo já conhecia esta grota e entre lama, lodo
e limo escalamos as cachoeiras que dão acesso ao colo entre o Dedo de Deus e o
Cabeça de Peixe. Paus, pedras e piadas rolaram por 300m de desnível e em 3
horas estávamos no último platô de terra da aproximação. Aos 1330m encordamos
um trepa-pedra. Diogo nos mostrou os vestígios de uma corda fixa, Felipe nos
sugeriu deixar o portaledge montado
ali enquanto Marcel nos ajudou a encontrar água. Nos despedimos do time de
apoio e nos motivamos mutuamente. Minutos depois que eles se afastaram, Cami,
Kilian e eu escutamos passos na mata quebrando galhos. Conforme os passos se
aproximavam, o barulho dos galhos nos dava a dimensão do que se aproximava.
Sons de troncos e tocos se quebrando nos gelou com a presença de uma família de
gorilas na copa das árvores. Muriquis! Depois de matarem sua curiosidade,
vazaram. Foram quebrar outros galhos. Nossa família também tirou os pés do chão
naquela noite.
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Gui Pahl fev/2017