Explorar cada pedaço do mundo é um dos meus objetivos pessoais nessa vida. Se for na água estarei remando, se for por terra correndo, pedalando e escalando. No entanto, a ideia de subir alta montanha ainda estava adormecida nos meus planos até receber o convite mais inusitado: competir contra quatro excelentes corredoras de montanha no Mount Yuzhu com 6178 metros de altitude em relação ao nível do mar, na China.
No momento que li o e-mail com o convite fiquei extremamente empolgada e ao mesmo tempo apreensiva. Chegar aos 6000 metros de altitude tem seus riscos, numa competição então... O percurso seria apenas de 12km, sendo 6km de subida e 6km de descida pelo mesmo caminho e teríamos que utilizar botas rígidas, crampons e cadeirinha a partir dos 5600 metros onde o terreno tornava-se gelo.
Com pouco mais de um mês para a viagem precisei adaptar meus treinos e pouco poderia fazer em Brasília. Gui (meu marido) e eu estávamos com uma expedição de escalada marcada para a Pedra do Sino, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos no Rio de Janeiro e ficaríamos 15 dias pendurados em cordas escalando e dormindo pouco em condições nada favoráreis a preparação para uma corrida em alta montanha! Tivemos a ideia de olhar passagens para alguns países da América do Sul, na Cordilheira dos Andes, onde poderíamos experienciar a altitude e escalar e assim acabamos indo para o Peru.
Lá fizemos duas missões, a Esfinge, maior parede rochosa peruana com 700 metros de desnível e cume a 5335 metros em relação ao nível do mar e o nevado Ishinca, chegando a 5540 metros. Mesmo não ultrapassando os 6000 foi uma experiência essencial na minha preparação, sofri demais para aclimatar aos 4500 metros e só após sete dias nas alturas é que comecei a me sentir bem.
Voltando ao Brasil tive duas semanas antes de seguir à Pequim onde encontraria as outras competidoras. Na lista estavam a Mimi da França, duas vezes campeã mundial de corrida de aventura, a Stevie Kremer, duas vezes campeã mundial de Sky Run, a Dong Li, melhor corredora chinesa de montanha com vitórias em diversas ultras como a TNF Endurance Challenge (em Hong Kong e na Austrália) e a Ruth Croft, da Nova Zelândia, com vitória na prova CCC do Ultra Trail Du Mont Blanc com 120km e na Mount Everest 60 km Extreme Ultra Marathon.
Me senti super honrada em fazer parte dessa seleção. Ao lado delas, pouco importava a colocação que chegaria, essa seria uma experiência única e estava ansiosa pelos dias à frente.
Todas nós ganharíamos premiação em dinheiro, bastava completar o percurso sem oxigênio suplementar. A largada se daria a 5050 metros e subiríamos até o cume com 6178 metros de altitude. A partir dos 5600 era necessário utilizar botas rígidas e crampons por causa do gelo, o que para mim não causou nenhum pânico e daria mais uma pitada de aventura na corrida.
Cada atleta foi responsável pela sua aclimatação e por uma semana fizemos idas e vindas entre a cidade mais próxima Golmud, a 2800 metros de altitude, o centro de treinamento que era um local onde alpinistas iniciavam a preparação para o Mount Yuzhu, a 4300 metros, o acampamento base a 5000 e o acampamento avançado a 5600 (local onde trocaríamos os tênis de corrida por botas e crampons).
Seria importante para um bom desempenho fazer cume em algum desses dias, tanto para experimentar a altitude, como para conhecer o terreno, porém, o clima não era dos melhores, tivemos nevasca nos dias cruciais para isso e acabei chegando só até o acampamento avançado.
Dois dias antes da prova retornamos a Golmud para descansar onde ficamos no hotel mais espetacular que já vi, o único lugar onde a comida chinesa era boa! No acampamento tínhamos cozinheiros, mas pouca variedade de comida, tudo sempre com o mesmo sabor. Os chineses tem costume de usar o mesmo “palitinho” para comer e se servir e aquela mistura de salivas e a pouca higiene do acampamento me deixava à beira de uma intoxicação alimentar.
Das meninas, além de mim, duas eram vegetarianas e isso foi ótimo, pois em maioria, tínhamos sempre um pouquinho a mais de vegetais.
Um dia antes da largada retornamos ao acampamento base e para essa noite a organização nos trouxe um motor home para que dormíssemos mais confortavelmente. No domingo, dia da prova, o clima era perfeito e às 9:20 largamos!
Tínhamos 1km com pouca inclinação antes do início da montanha e as meninas correram bem esse trecho, eu sofri para dar um trotinho, pois a 5000 de altitude naturalmente perdemos em torno de 30-40% de nossa capacidade física.
Resolvi manter um ritmo forte, mas confortável, com medo de como iria me sentir lá pra cima. Logo no início da subida passei a Dong Li e segui firme me sentindo bem até o acampamento avançado. Levei uma hora para completar essa parte da prova com 4km e 550 metros de ascensão. Ao chegar na área de transição a organização havia transportado nossas botas, crampons e cadeirinhas, me hidratei com água morna, comi, me equipei e segui. A partir dali teríamos trechos com cordas guias até o cume e era obrigatório seguir “clipada” a elas.
Ao passar os 5800 metros a sensação de exaustão, devido à altitude, foi enorme. A montanha inclinava cada vez mais (30 graus) e sofri muito para seguir. Era necessário uma parada para 10 respirações a cada 20 passos! Ali percebi que a competição tinha mudado de foco. Com as minhas limitações e a grande falta de ar segui em frente bem lentamente e após 1 hora e 40 minutos, desde o acampamento avançado, fiz cume.
Pouco pude desfrutar daquele momento, pois afinal queria assegurar aquele quarto lugar. Bati o chip eletrônico dei meia volta e iniciei o descenso. Em 30 minutos retornei a área de transição onde me hidratei e me alimentei mais uma vez, troquei as botas por tênis e segui para a chegada. Foram mais 30 minutos até cruzar o pórtico e naquele momento uma lágrima veio ao meu rosto junto com um grande sentimento de emoção e superação de limites.
O Red Bull Summit Quest, um desafio só para mulheres que atingiu a maior altitude em uma competição até hoje tinha sido realizado e eu havia feito parte daquilo tudo.
Com o quarto lugar, levei 3 mil dólares pra casa e mais uma vez a China se afirmou como o país que mais valoriza o atleta de esportes outdoor. Além dessa prova, a CMA (Chinese Mountaineering Association) organiza diversos eventos anuais com vários formatos, distâncias e esportes sempre em ambientes naturais, incentivando a vinda de atletas internacionais e pagando ótimas premiações. Essa foi a minha quarta ida para a China e ainda esse ano terei mais duas provas de altíssimo nível por lá.
Sinceramente, tenho dúvidas se aceitaria novamente um convite como esse. Não posso negar que a experiência foi incrível e muito enriquecedora, mas para estar totalmente segura e preparada eram necessários mais dias de aclimatação. E outra, alta montanha é um ambiente hostil e por si só é necessário grande atenção a cada movimento. Fazer cume de montanhas exigentes é um grande desafio e no Mount Yuzhu confesso que me senti desrespeitando algumas condutas em pró da competição e no final demos muita sorte de nada grave ter acontecido a nenhuma de nós.
As montanhas nos fazem refletir e trazem momentos de serenidade. Contemplá-las faz parte da jornada, desafiá-las me faz crescer como ser humano. Do Mount Yuzhu levo novas amizades, aprendizados e a certeza de que essa foi uma nova porta que se abriu para novos desafios.