O lado côncavo da Pedra do Sino



Escalada de Big Wall (grandes paredes) não é para todos.

Escalada de Big Wall talvez não seja para mim...

Eu acabei de sair do carro e já estou pensando em desistir!

 

Na portaria do Parque Nacional da Serra dos Órgãos nos registramos e recebemos a Autorização. Vamos tentar a via Franco-Brasileira na Pedra do Sino. Aferimos nosso altímetro para 1100m e iniciamos a trilha turística para o abrigo 4 da Travessia Petrópolis – Teresópolis a aproximadamente 2100m do nível do mar. Eu e minha esposa, Camila, nos misturaríamos perfeitamente aos outros turistas não fosse pelos pacotes que carregávamos nas costas. Se houvesse um voo até a base da parede nós estaríamos ferrados com o excesso de peso...

O colo Oeste dá acesso a grota onde a aproximação deixa a trilha e inicia um terreno técnico para descer até a face Sudoeste, o Lado Côncavo da Pedra do Sino. Que nós não conheciamos! Ali, nosso Haul Bag (saco de içamento), saía das costas para ser longamente arrastado entre as pedras e rapelado pelos penhascos. O mato e a água escorrendo das paredes completavam o cenário da grota. Nosso progresso era lento e exaustivo e o clima opressor! Nossos betas (dicas) sobre a aproximação se limitavam a uns dois rapéis, mas com a nossa carga montamos as cordas mais de 10 vezes até a base da via que esperava enxergar a uns 1700m de altitude. Porém, a segunda noite nos alcançou nos 1843m. Bivacamos no Porta Ledge (platô portátil, uma barraca para grandes paredes) que trouxemos; um modelo individual e sem cobertura... 80cm de largura para eu encoxar a minha Princesa... algumas horas depois antes mesmo de abrir os olhos passamos a escutar o vento subindo pelo vale. Ricocheteava explodindo nas paredes bem em cima de nós com um poder assustador. Levantamos para o terceiro dia e uma densa neblina nos tocava. Ouvi o vento e olhei pra cima, ele urrou ao se confrontar com um Gigante ainda mais poderoso. Vi a via e me nauseei. Pensei em desistir.

Por volta de 12:00pm do terceiro dia alcançamos a base da via. Tentei enganar meus medos tirando os pés do chão o mais rápido. Trepei um mato louco, cavei uma fenda A2 (graduação de escalada em artificial) entupida de lama e pudemos fixar na P2 (segunda parada) o que parecia ser uma linha de 60m de altura ideal para içarmos o haul bag. Voltamos para o chão e nos preparamos para o comprometimento vertical. Enchemos 30 litros de água mineral da grota, porém antes do jantar de despedida a chuva caiu. Nosso porta ledge individual agora contava com um saco de bivaque e uns biscoitos pra eu dormir de conchinha com o meu Amor...

Nosso plano era dividir a via em 3 blocos, cada bloco separado por um bivaque: o primeiro bloco até a P5 no Platô do Escorpião; o segundo bloco até o Platô do Que Couber entre a P10 e P11; e o terceiro bloco até a P14 no início das rampas do cume.

No quarto dia da nossa expedição nos elevamos para completar o primeiro bloco no Platô do Escorpião. Foi preciso lidar com mais lama e mato antes de alcançar a pura rocha, mas acho que nada se comparou ao empenho necessário para tirar o nosso colega moribundo, o haul bag, do chão...eu gritava para Cami dizendo que ele estava entalado e ela gritava de volta dizendo que nem saíra do chão ainda! Precisamos nos reunir na P2 para juntos trazermos nosso kit pra cima. Lutamos para ganhar metros antes que a neblina molhada nos alcançasse pela última vez. 18 horas depois, apesar da escuridão, cruzamos uma fronteira muito clara. Dormimos secos e sem as dúvidas.

Do lado de lá do segundo bloco também podíamos ouvir o vento antes mesmo de acordar. Abri os olhos e vi novamente a língua gigante de neblina e baba gelada que lambia o vale, agora a 135m lá pra baixo. Olhei pra cima e vi a via. Cristalina! Não senti aquela opressão, pelo contrário, me senti bem-vindo ali, sólido como parte da rocha, agradeci sabendo que logo ali detrás da fronteira, a poucos metros, todos os meus medos... 

Ainda deitados com as costas no Platô enxergávamos as fendas se conectar e dar acesso as P7, P8 e P9 em um super negativo com mais de 100m de altura e quase 30% de declividade! O Lado Côncavo da Pedra do Sino está dentro de um novo Universo!

   Nos próximos dias adaptamos nossa estratégia já que lá fora, a neblina passou a se movimentar com fortes ventos e chuva. Aquela língua gigante de baba gelada estava sempre ali quando olhávamos para o vale. Como se a boca do Gigante estivesse no alto da serra e ele lambia o vale em todas as direções horas chegando a metros da nossa posição. A simples proximidade da língua tirava até 4°C do nosso Universo! Era assustador mas ela nunca nos tocou. Assistíamos a tempestade passar na nossa frente e explodir na face norte da Pedra do Garrafão. Enquanto isso, dentro do nosso mundo, a pedra estava sequinha e nossas roupas estavam suficientes. Enquanto as condições se mantivessem, a gente ia se entubar na base daquela onda e curtir de montão! Escalamos muito, fixamos cordas até a P8, içamos a carga para cima da nossa posição e bivacávamos confortavelmente no Platô do Escorpião. Equipamos o negativo e toda vez que rapelávamos nos surpreendia a declividade, pois ao descer perdíamos o contato com a pedra em mais de 1m a cada 3m!

No oitavo dia de expedição já estávamos a 5 noites pendurados e com o negativo todo equipado. O tempo lá fora ainda não dava trégua. Aqui dentro nossa tolerância estava no limite, mas nossa perseverança alta! A P9 está no meio de uma travessia que nos levaria a um outro lado. Não sabíamos o que estava por vir mas era chegado o momento de passarmos para o Lip (crista da onda), o terceiro bloco da escalada. A saída do negativo é uma escalada clássica deixando o diedro em passadas de cliffs (equipamentos para escalada artificial) na direção de uma fenda horizontal embaixo de um teto, seguindo até a borda de um platôzinho que forma a P9. Quando alcancei esta borda, a língua tinha acabado de passar ali e bati a mão numa pocinha de água no platô. Dominei, pisei na água e me auto-assegurei. Vamos conseguir! Aceleramos os trabalhos, pois a ansiedade bateu junto com o vento que não sentíamos a uns dias. Depois de posicionar o haul bag para o içamento, a Cami limpou o início da travessia aos pêndulos sobre o vazio. Eu, ela e o Vento nos reunimos na P9 e perguntei a Cami se estava tudo bem, ao que me respondeu:

- Sim. Mas vamos mudar de assunto.

Ok. Foco na tarefa! Enquanto nos reequipávamos o vento foi embora. Olhei pra minha mulher e vi seu rosto clarear e juntos sorrimos porque depois de uma semana encontramos com o Sol! Gargalhadas de felicidade e gritos ecoaram de volta de um vôo sem turbulência até as paredes do outro lado do vale! Vamos escalar! Antes de sairmos do platô descobrimos uma relíquia: numa fenda fina está um rolo de filme antigo que enquanto tentamos resgatar alimentava nossa imaginação sobre estas imagens guardadas ali. Mas não conseguimos pescá-lo e a curiosidade foi controlada já no primeiro lance de escalada em direção a P10. A travessia continua no que pra mim foi o crux (trecho crucial) de toda a experiência. Apesar de conectar alguns terraços a parede continua com inclinação negativa e desde os primeiros lances escalamos umas lacas expansíveis de pedra que fazem as fendas se abrirem e as proteções se tornarem ornamentos delicados.

Até o cair da noite eu tinha me pendurado em heads, cliffs, pitons e spits de 30 anos atrás (mais equipamentos para escalada). Além da noite, vi cair nuts, camalots (proteções) e blocos imensos de pedras. As 2:00am dentro do círculo azul da minha lanterna de emergência, meu apoio falhou e eu voei naquele lençol preto que tinha embaixo dos meus pés... antes do meu último piton gritar toquei um platô com os pés, o círculo azul iluminou meu camalot, o bloco de pedra que descia comigo e só então, a corda esticou! #%&*!!!

- Cami me passa os jumares (ascensores)! 

23 horas foi o tempo que precisamos pra chegar no Platô do Que Couber e descobrir que só cabe uma garrafa pet neste platô! Dado o nosso estado e grau de trauma, montamos o porta ledge e agradecemos por receber uma massagem relaxante dos tubos enquanto nos apertamos. Pela primeira vez não escutamos o vento e talvez por isso batemos o recorde de entalamento nupcial e só abrimos os olhos às 11:00am no nono dia. Para o café da manhã a dois recomendo o porta ledge individual pois desfrutamos de cada momento sentados com os pés balançando no vazio, e recobrando as forças e confiança. Ainda não havia acabado, o terceiro bloco da escalada ainda faz parte do Lado Côncavo da montanha e até as últimas cordadas são negativas! Ainda conseguimos fixar até a P12 neste dia e apesar do vento não estar por aqui, o Sol também não apareceu.

Décimo dia. Ataque ao cume! Saindo cedo, juntamos nossa casa de caramujo e nos arrastamos na velocidade deles parede a cima. Nos tomou 18 horas para chegar a P14 nos provando até o último lance de domínio das rampas do cume. A complexidade da escalada foi constante desde o início e nossa expectativa de que a via ia facilitar no próximo lance nunca foi atendida. Isso nos fez gritar Cumeee na reunião da P14 naquela noite, mas o vento voltou com um poder que só havíamos experimentado na Patagônia furiosa e até ali, eu pensei pela última vez em desistir. A transição entre a escalada e a caminhada pelas rampas de pedra e mato até o cume nos fez bivacar atrás do único bloco de rocha capaz de deter aquele vento pra eu me proteger com a minha Rainha!

Na manhã do décimo primeiro dia nos agarramos ao cume para não ser ejetados. Gritamos e urramos de alegria e libertação na mesma frequência do vento que foi o espectador da nossa luta e agora compartilhamos uma euforia do mesmo tamanho. Conseguimos! Escalamos o Lado Côncavo da Pedra do Sino! Conhecemos a Montanha! Conhecemos a nós mesmos! Nos comprometemos ainda mais com a nossa parceria! E acho que compreendemos Salman Rushdie sobre a montanha: “Um obstáculo; uma transcendência; acima de tudo, um efeito.”   

 

Escalada de Big Wall (grandes paredes) é para todos.

Escalada de Big Wall talvez seja para mim...

Eu acabei de chegar em casa e já estou pensando na próxima!

 

Gui Pahl jul/2015    



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