Nada acontece por acaso. Tudo que colhemos hoje é fruto do que plantamos no passado. Em 2018 quando voltei às provas de expedição após minha gravidez, tive uma tarefa de grande responsabilidade que foi integrar uma das maiores equipes de Corrida de Aventura do mundo a Columbia Vida Raid. Mesmo sem pressão por parte do time, me senti na responsabilidade de dar o meu melhor. Naquela ocasião nós vencemos e ali nasceu uma equipe com qualidades complementares e com grande potencial.
No ano seguinte repetimos a dose e ganhamos mais uma vez. Talvez pudesse ser o clima acolhedor do Paraguai ou o perfil de prova que nos caiu muito bem, mas fato é que nós quatro nos entrosamos muito e quisemos nos desafiar em um outro ambiente, escolhendo assim a Patagonia Raid como destino.
Para o Gui e para mim a Patagônia tem um valor sentimental enorme. É onde passamos nossas “férias” todo o mês de janeiro há seis anos, escalando, correndo e desfrutando com o nosso pequeno Kilian. Competir nesse ambiente hostil nunca me atraiu muito, sabia de todos os riscos e dificuldades, principalmente com relação ao clima que poderíamos nos expor ao se propor a esse desafio e isso adicionou uma pitada a mais de aventura.
Quando recebemos a logística da prova com as distâncias, modalidades, tempos e altimetria não acreditamos que seria possível alcançar tamanha velocidade. Em nosso planejamento adicionamos mais tempo e comida a cada etapa, porém pela primeira vez iríamos baixar os tempos planejados.
Partimos as 6 da manhã de San Martin de Los Andes. Na bike inicial perdemos o primeiro pelotão, mas seguimos constantes pelos 40 km ao lado do Lago Lacar. Fizemos uma rápida transição e entramos no lago para remar os botes de rafting por mais ou menos 20 km. No final da etapa teve uma espécie de prova técnica onde desempenhamos tarefas como virar e desvirar o bote, carrega-lo na cabeça passando por obstáculos e outras coisas mais. Alcançamos o primeiro pelotão e saímos embolados para a próxima etapa nas bikes novamente.
Tinham dois PCs fazendo bate e volta durante o trecho, mas era possível encarar uma opção mais ousada cruzando o lago por uma parte mais estreita nadando com as bikes e assim economizar 10 km de pedal. Durante o rafting passamos exatamente por esse local e vimos que era possível atravessar e assim resolvemos arriscar. Pra nossa sorte o lago não estava congelante e a trilha para acessar esse trecho foi rápida, cruzamos o lago e assumimos a ponta da prova.
Transição rápida para o primeiro trekking, mas quando estávamos saindo fomos alcançados pela equipe francesa Naturex. Pensamos: “Caramba eles pedalaram 10 km a mais e já estão aqui!” Esse trekking começava com uma subida gigante e no meio dela fomos ultrapassados. Quando chegamos no cume dessa montanha estava no fim do dia e o por do sol foi especial, mas como queríamos aproveitar a última luz para descer com velocidade, não perdemos tempo e despencamos montanha a baixo. Terminamos essa etapa e seguimos para a bike mais longa da prova, 120 km, durante a noite. Navegando melhor, alcançamos a Naturex, ultrapassamos eles e abrimos uns 30 minutos. O final dessa bike era numa pista de esqui com um desnível de mais de mil metros de uma só vez e lá em cima começava o próximo trekking.
Nesse trekking podíamos buscar os PCs em ordem aleatória pelas pistas de esqui secas de neve porém lotadas de “mother fuckers” que foi como apelidamos os carrapichos, aquelas bolinhas cheias de espinho que grudam em todo lugar e são um inferno para tirar, o que nos faz trabalhar ainda mais o psicológico durante dias de prova. Conseguimos manter uma certa vantagem sobre os franceses finalizando esse trecho em menos de 3 horas, porém ao partir para a sessão seguinte, novamente de bike, cometemos um erro besta que nos custou preciosos minutos.
Enquanto fazíamos um tremendo rasga mato com as bikes, vimos eles passarem ilesos pelo caminho correto e nossa vantagem se foi. Retomamos o rumo chegando na próxima bifurcação de onde eles voltavam (errados) e juntos seguimos até a AT 7, o último trekking da prova.
Partimos juntos, porém eles logo abriram uma pequena vantagem, mas não os perdemos de vista. Confesso que disputar uma prova com essa equipe (os terceiros do mundo) já seria um grande triunfo para mim, mas o sonho de ganhar poderia ali se tornar real e foi o incentivo constante do Jon que nos moveu como máquinas dali em diante. De fato não tivemos pernas para responder ao ataque deles nessa etapa ficando um pouco para trás, mas nossa fé estava inabalável e não baixamos a cabeça. Partimos para o último pedal acreditando na vitória!
Esse pedal fazia um bate e volta no AT de onde partimos e deveríamos mostrar as últimas fotos (de comprovação de passagem nos PCs), isso significava uma longa descida, uma longa subida e uma longa descida para chegada. A esperança se manteve viva a todo momento, o trabalho em equipe de toda a nossa prova foi excelente e nesse momento crucial para não nos “rendermos”. No final da primeira descida cruzamos com eles. Com cinco minutos de subida começamos a avistá-los, a adrenalina anestesiou todas as dores que tínhamos e ao ultrapassa-los a emoção tomou conta de nossos corpos. Terminamos a subida, mostramos as fotos e despencamos montanha a baixo. Uma última parada numa passagem obrigatória, a última foto, não os vimos, veio um enorme alívio, mas a certeza da vitória só se daria após a linha de chegada.
Poder extrair tudo que você tem disponível após 40 horas competindo freneticamente é acreditar que realmente podemos. Nessa prova, trabalhamos sob pressão o tempo todo e mesmo assim tomamos decisões muito assertivas, principalmente com relação a navegação do Gui e do Nick que foi muito precisa. Soubemos administrar o ritmo alto sem quebrar e guardar um restinho pro tudo ou nada do final.
Ganhar uma Corrida de Aventura nem sempre significa fazer uma prova perfeita. Por trás de uma vitória está um trabalho árduo de planejamento, logística e busca por oportunidades. Isso não se aprende do dia para noite, isso só acontece com muitos anos de experiência, erros e muita aprendizagem.
Ganhar uma Corrida de Aventura é ver que todo esse trabalho deu certo e isso me trás ainda mais satisfação de poder fazer parte desse universo tão complexo e gratificante.